3.9.11

Inocente até que se prove o contrário.


Para ele, era fácil escrever o amor. Cada palavra, cada pensamento e cada diálogo eram exatamente como ele desejava que fossem. Sua mão tocava a caneta, e tudo passava a ser permitido. Naquele mundo de papel, imperfeições não duravam para sempre. Ali, ele conseguia pôr ordem onde o caos era a lei predominante.
Em seu escritório, Mike pensava em como matar o protagonista da história quando seu celular literalmente zumbiu. Praguejando ao notar que a concentração lhe dizia adeus, começou a procurar pelo aparelho em meio a bagunça de sua mesa. Olhando para a pequena tela, viu que o toque personalizado de abelhas indicara a chegada de uma mensagem.
- Não sei se você conseguiu se lembrar, mas hoje é meu aniversário. Vou fazer um jantarzinho aqui em casa. Nada muito sofisticado, claro. Talvez só você e eu. Me liga quando puder.
Quando pudesse, bufou. Como se ela não soubesse que o tinha na palma das mãos. Um suspiro, por mínimo que fosse, e ele já estaria ao lado dela, pronto para mais alguns momentos reais de amor.
- Mike?
Ao escutar a voz de sua esposa, ele abriu uma gaveta e jogou o aparelho celular lá dentro. Suspirando, virou-se na cadeira para que pudesse encará-la. Não havia culpa em nenhum de seus movimentos ou em seu olhos cor do mar. Mike já não a amava. Sabia que ele e a esposa não eram nada além de personagens de uma história mal escrita qualquer. Uma história que nunca tinha final, ainda que o fim inevitável já houvesse acontecido há muito, muito tempo.
- Você vai jantar em casa hoje?
- Não tenho certeza.
- Mamãe quer saber. Ela me ligou há pouco e disse que vai trazer algum daqueles pratos sofisticados que ela adora. Quer saber ao certo que quantidade comprar. Você sabe que ela odeia ver comida sobrando e...
Enquanto a esposa continuava a explicar a situação, Mike pensava na mulher que lhe enviara a mensagem. Seu nome não era dos mais bonitos - e, na verdade, ela também não poderia ser vista dessa forma -, sua idade não era muito menor que a da esposa dele, seus dentes não eram tão retos, seus dedos não eram tão macios, suas roupas não eram tão coloridas... Mas ele a amava.
Amor. Que palavra ingrata. Tão bonita no papel e quase sempre tão feia na vida real. Para Mike, era incógnita e bastante clara, tudo ao mesmo tempo. Quando escrevia, sentia-se tão próximo ao amor que até poderia se esquecer de seu casamento fracassado, de sua ingênua mulher e de sua amante imperfeitamente perfeita.
- Então, você vai jantar em casa hoje?
Quando a voz pausada da esposa penetrou sua mente confusa, Mike sentiu a verdade mostrar-se imediatamente, tão exuberante como um anúncio em neon: não queria mudar a logística das coisas, por falta de coragem ou por simples comodidade. Além disso, para ele era fácil escrever o amor. Vivê-lo, entretanto, lhe era impossível.
- A resposta está escrita em meus olhos - sorriu.




P.S.: Pauta para a 84ª Edição Musical do Bloínquês - minha primeira :)

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