25.12.12

De princesas e seus castelos.



Para mim, aquele era o pior Natal que já havia existido. Respirando fundo, tentei levantar-me da cadeira, mas minhas pernas falharam bruscamente outra vez.
- Calma.
Escutei sua voz, mas não me virei para encará-lo. Escutá-lo era suficiente. Mas então ele segurou minha mão e afastou minha franja do rosto com suavidade. E eu me senti desabar. Apenas ouvi-lo estava longe de ser o bastante. E aquele precisar infinito me amedrontava.
Durante toda a minha vida, eu fora dependente do meu pai. Desde meu nascimento, havíamos sido ele e eu. Claro, meus avós estavam presentes sempre que eu me lembrava de alguma festividade ou algum dia particularmente especial. No dia a dia, porém, nas pequenas coisas, quem aparecia era ele.
Minha mãe falecera devido às complicações do parto e os primeiros dois anos não foram nada fáceis. Mas ele permanecera ali para mim. Ele me chamava de princesa quando eu era criança e me lembro de pensar nele como o meu castelo. Sempre cuidando e protegendo. Mesmo sofrendo - descobri anos depois - dos ataques de pânico decorrentes da responsabilidade repentina de ter que lidar com uma recém-nascida.
Se fecho meus olhos, posso recordar todos os Natais da nossa vida. Eles foram alegres e, o mais bonito de tudo, repletos de amor. Meu pai sempre fizera questão de montar a árvore sozinho - acho que era meio que uma questão de honra para ele - e sempre acabávamos por abrir os presentes muito antes da hora.
Posso ainda me lembrar de todas as nossas pequenas tradições, do cheiro do assado prestes a sair do forno, do riso dele quando alguém elogiava a beleza da decoração, das músicas natalinas que ele insistia em acompanhar com sua voz nada afinada... Posso me lembrar de tudo. E dói muito saber que ele não.
- Não sei o que vou dizer quando entrar lá - sussurrei, encarando meu marido pela primeira vez naquela noite infernal.
- Quando você estiver com ele, você vai saber, Aila. Vai saber, como nos velhos tempos. 
- Promete?
- Prometo - Gustavo sorriu pequeno, como se o esforço de sorrir grande fosse demais inclusive para ele. - Ele ainda está lá, você só precisa procurar com mais detalhe. Mas ele ainda está lá.
- Ele ainda está lá - repeti, como se precisasse me certificar daquilo.
- Ele ainda é o cara que criou sozinho a mulher mais incrível que eu conheci. Isso não vai embora.
- Odeio hospitais. Odeio essa maldita doença.
- Eu sei - ele murmurou, acariciando meu pescoço, sabendo que a tensão que eu sentia ali estava ficando insuportável.
- Ele nunca ficou assim, sabe? Tão mal, tão...
- Shh. Não chora, minha linda. Vai ficar tudo bem.
- Estou com medo.
- Eu sei. E estou aqui para segurar sua mão.
- E para me abraçar? - perguntei com uma voz quase infantil. Algo me dizia que eu precisaria daquele abraço mais do que nunca quando retornasse da visita que estava prestes a fazer.
- Para te abraçar. Para sempre.
Sua voz decidida foi o que me deu forças para tentar - e dessa vez conseguir - me levantar. Caminhei até a porta do quarto e resisti à vontade de olhar para trás, de voltar correndo para os braços dele, de sumir daquele lugar.
Abri a porta e procurei pela cama do meu pai. A noite lá fora era estrelada e o brilho da lua iluminava o quarto. A cama dele estava perto da janela e seus olhos estavam fixos em algum ponto lá fora.
- Pai?
Aproximei-me com passos inseguros, vendo, em câmera lenta, seu rosto virando-se em minha direção. Seus olhos, mesmo na penumbra, exalavam expressividade. Mas nenhum conhecimento.
- Letícia?
Ou um conhecimento de um passado muito, muito remoto. Respirei fundo, contendo as lágrimas.
- Não, pai. Não sou a mamãe. Sou a Aila.
Estendi a mão e toquei em seus dedos, com medo de uma rejeição, mas precisando daquele contato. Ele não se encolheu nem tentou se soltar. Quase abri um sorriso.
- Aila... - ele murmurou. - Minha filha se chama Aila. Fui eu que escolhi o nome dela, sabe? Aila significa sagrada. Depois que a segurei nos braços, sabia que estava diante de um milagre. Você conhece minha Aila? Ela é tão bonita quanto você.
Engoli minhas lágrimas mais uma vez e apertei sua mão. Eu amava tanto aquele homem que vê-lo daquele jeito me partia ao meio. Partia meu coração ao meio.
- Aila é um nome muito bonito.
- É mesmo, não é? Onde está Gustavo? Ele não quis visitar esse velho homem, não é? Genros são sempre iguais - ele bufou.
Senti uma vontade de gargalhar de repente. Ele estava de volta. Por um minuto ou dois, por horas, por semanas. Ninguém sabia. E eu não me importava. Ele estava de volta. Era tudo de que eu precisava.
- Ele está lá fora. Quis me deixar sozinha com o senhor por algum tempo.
- Senhor? - ele voltou a resmungar. - Desde quando você me chama de senhor, Aila? Desde nunca, posso garantir.
Abri um sorriso e apertei sua mão. Quando desandava a falar, meu pai parecia um trem descarrilhado, quase não deixava ninguém mais abrir a boca. E como eu amava isso nele. Eu amava tudo nele. E precisava dizer isso a ele.
- Pai, eu amo você. Muito.
- Eu também te amo, Aila. Muito. - as lágrimas escorreram pelo meu rosto, molhando meu pescoço e transformando o vermelho da minha blusa em uma cor escura e feia. - Sua mãe estaria orgulhosa da mulher que você se tornou.
- Não, pai. Ela estaria orgulhosa do homem que você é. Obrigada por ter estado comigo. E por querer estar.
- Foi um prazer, princesa. Conhecer e amar você foram as melhores coisas que já me aconteceram. Eu não mudaria um segundo disso tudo.
Às vezes eu me perguntava como teria sido se minha mãe houvesse sobrevivido. E desejava, com todas as minhas forças, que ela realmente houvesse. Mas, parando para pensar com cuidado, eu também não mudaria nada das nossas vidas. Afinal, tudo acontece por um motivo, ainda que ele permaneça para sempre escondido de nós.
- Sabe que dia é hoje, pai?
- É Natal, Aila! Como eu poderia me esquecer do Natal?
- Me desculpe, pai. Você nunca esqueceria do Natal.
- Exatamente - ele falou com uma enorme veemência.
Sorri e me inclinei para dar um beijo em sua testa. Tal gesto era algo que ele odiava, mas dessa vez ele não reclamou. Sorriu, também.
- Feliz Natal, pai.
- Feliz Natal, minha princesa.
De repente eu não conseguia deixar de sorrir. No fim das contas, Gustavo estava certo. Meu pai ainda estava ali, o melhor homem do mundo, diante de mim. E só de ouvir sua voz e ver seu sorriso, a despeito das circunstâncias do Alzheimer, eu me sentia inteira novamente. Era eu quem me curava só por estar com ele. 

3 comentários:

  1. Reconheci o nome de imediato e meu coração já apertou, muito embora, eu admita, eu não lembrava bem de onde tinha lido antes. Aí eu li os dois e ai. Isso foi lindo, os dois foram, e esquentou um pouquinho de tudo o que é natal em mim. Foi leve e pesado e doído e cheio, mas cheio mesmo de amor. Obrigada por compartilhar com a gente,viu!? Feliz Natal.

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  2. Aila s2 tadinho, o pai dela passou muita pressão, né (como ele se chama?)? e faço minhas as palavras da thaic, "Foi leve e pesado e doído e cheio, mas cheio mesmo de amor."

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    1. Ele não tem nome mesmo... Pode pensar nele como quiser xD

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