6.7.12

Do amor que se sabe morto.



- Você vai cantar hoje e não se fala mais nisso!
- Não estou no clima - protestei, mas fracamente.
- Quem canta seus males espanta, não é?
- Nem sempre.
- Escuta todo esse povo que vai lá na frente...
- Estou escutando.
- Escuta de verdade! Olha só pra banda. Os caras ficam até desanimados com tanta desafinação junta.
- Terei que ser a responsável por salvá-los?
Naquele momento, um rapaz cantava uma música que reunia tantas palavras inventadas que até um dicionário ficaria perdido ao escutá-lo.
- Claro. É sua sina, tendo essa voz tão linda, salvar a nós todos de uma morte lenta e dolorosa.
- As pessoas vêm aqui pra se divertir, amiga. Não há nada de mau nisso. Observe os amigos dele como cantam junto e...
- E morrem aos poucos por dentro! Que voz de taquara rachada, por favor! - ela ergueu o braço para um garçom que passava e lhe pediu um papel. - Pronto, escreve aqui seu nome e a música que vai cantar.
- Ah...
- Anda logo, menina! Preciso de um respiro aqui. Meus ouvidos precisam! Quebra essa.
Ok, provavelmente eu não teria saída. Peguei o papel e a caneta que ela me estendia e escrevi rapidamente uma canção que nos últimos dias não saíra da minha cabeça. Assim que rabisquei a última letra do meu nome, decidi que aquela poderia ser uma boa oportunidade para que eu exorcizasse alguns fantasmas bastante particulares e recentes. Quem sabe eu não iria conseguir - ali, naquela noite inicialmente comum -, derrubar alguns muros ao redor do meu coração e me reerguer no processo? Quem sabe?
Minutos depois, minha amiga começou a me cutucar no ombro, como se eu estivesse temporariamente surda e não tivesse escutado meu nome anunciado pela voz do DJ.
- É sua vez! Vai com tudo! - ela gritava.
- Sua fangirl - acusei sorrindo.
- Sempre!
Enquanto eu andava até o palco, ela assoviou - algo que sempre dissera que não conseguia fazer - e bateu palmas como se eu fosse a própria Colbie Caillat ou coisa parecida. De certa forma, ajudou, pois meu coração pareceu acertar o ritmo e já não mais corria como um louco.
Quando apoiei uma das mãos no microfone e encarei o público, percebi que quase ninguém prestava atenção em mim. Melhor assim. Respirei fundo e fiz um sinal para o rapaz do violão, que começou a tocar com uma má vontade tão aparente que quase pedi para que ele começasse de novo. Mas eu não era ninguém, e só precisava me divertir como se não existisse um amanhã ou um mundo real lá fora.
- You've got magic inside your finger tips. It's leaking out all over my skin everytime that I get close to you. You're makin' me weak with the way you look through those eyes...
Assim que comecei a cantar, me senti fora dali e de volta ao pequeno apartamento que dividíamos até cinco dias, vinte horas e poucos minutos atrás. Eu não estava muito errada sobre aqueles fantasmas, afinal. Agora todos eles se misturavam, se convertiam e se confundiam na forma de uma só pessoa.
A porta se abrindo gentil e suavemente do jeito que sempre acontecia quando ele chegava do trabalho, como se o cansaço fosse tão profundo a ponto de ele não ter quase nenhuma força sobrando. O suspiro de alívio por finalmente estar em casa, o barulho das chaves batendo no tampo de vidro do aparador, seus olhos percorrendo a sala em penumbra até encontrarem os meus... Sua voz, estranhamente diferente naquele dia, me chamando pelo nome.
- And all I see is your face, all I need is your touch. Wake me up with your lips, come at me from up above...
Relembrei a mim mesma colocando tranquilamente o livro no sofá ao meu lado, me levantando com passos dolorosamente lentos, como se o mundo pudesse esperar que meu caminho até ele se completasse, porque aquilo era mais importante que todo o resto. Porque ele e eu éramos importantes. Depois, meus braços se preparando para abraçá-lo pela cintura e os dele me impedindo antes que o objetivo fosse alcançado. E a voz... - acho que nunca vou me esquecer da voz - dizendo que precisávamos conversar.
- I remember the way that you move... You dancin' easily through my dreams. It's hittin' me harder and harder with all your smiles. You are crazy gentle in the way you kiss...
A nossa história terminou segundos depois. Assim como a música terminaria daqui a alguns milésimos. Nada é feito para durar, refleti. Ridiculamente, precisei de um cara para me mostrar o tanto de verdade que essa afirmação continha. Precisei começar a morrer por dentro para entender que nada acontece do jeito que a gente quer ou imagina ou deseja ou espera... E que a vida tem um jeito engraçado de mover as peças nesse jogo do qual apenas ela sai vencedora. Não temos a menor chance.
Quando a música terminou, sorri para minha amiga que secava os olhos discretamente. Ela me fez um sinal com a cabeça e foi então que reparei que as pessoas estavam me encarando. Comecei a olhar para aqueles rostos desconhecidos e vi que algo na minha voz tinha chegado até eles, de uma forma que eu mesma desconhecia, mas cuja grandiosidade respeitava infinitamente.
Sorri novamente e escutei os primeiros aplausos conforme eu voltava para a mesa. Fiquei meio sem jeito e acho que até corei, mas todo o bar estava me aplaudindo - a banda inclusive.
Não sei se pelo magnetismo que sempre existiu entre a gente ou pelo diferencial de que ele era o único parecendo uma estátua, sem palmas nem sorrisos, mas o avistei rapidamente. E então todo mundo pareceu desaparecer quando nossos olhos travaram contato. Os meus ainda revelando todas as lembranças que a música me trouxera e que doíam exageradamente; os dele, limpos e claros como se eu fosse apenas outra pessoa qualquer. Então o olhar dele se soltou do meu, ainda que eu fizesse um esforço inútil para que ele continuasse ali para sempre, e pousou na pequena mulher que o acompanhava. Bom... lembra daquela lição que aprendi há cinco dias, vinte horas e muitos minutos? Acho que ela não era a única.

2 comentários:

  1. A medida que eu fui lendo, tinha tanta coisa pra comentar... Mas no final, eu só pude perceber como isso me tocou, me atingiu, e eu ainda não sei definir o que eu estou sentindo :s não sei, é estranho, não consigo explicar.

    ResponderExcluir
  2. nada é feito pra durar.nem relacionamentos... que história triste. bom,concordo que nada dura sob a condição da morte.mas,é por aí....
    @blogabs | Blog Emilie Escreve

    ResponderExcluir