18.4.12

Disfarces.


Primeiro, foram as nossas datas especiais. Mas ele nunca foi muito de se lembrar delas, então eu sequer desconfiei. Mas depois foi o que ele havia comido no almoço ou o horário daquele programa de tevê favorito. E, ainda mais tarde, vieram os nomes dos netos, dos filhos e do nosso cachorro de estimação.
Como uma compensação perversa, ele passou a se lembrar da cadela da qual cuidara na infância, do seu melhor amigo no primário, da sua primeira namorada... E eu permanecia ali, escutando suas memórias que jamais seriam minhas, participando de conversas que jamais entendi completamente, conversando sobre mulheres que um dia foram importantes na vida dele e, agora, voltavam a ser, como se eu nunca houvesse existido.
Doía. Mas o mais doloroso era quando sua cabeça parecia voltar repentinamente ao presente e ele sorria para mim do mesmo jeito de sempre. E falava comigo. Comigo. Era horrível saber que esses momentos seriam passageiros, que ele logo voltaria para aquelas histórias antigas tão recentes em sua cabeça, que logo ele voltaria a se esquecer que nos amávamos... E seguiria pela estrada da memória e eu ficaria para trás, como um animal abandonado, observando-o com olhos esperançosos e sofridos, esperando pelo momento em que ele se viraria e me olharia nos olhos como se realmente me conhecesse.
- Feliz aniversário.
Franzi a testa e olhei para ele, que permanecia sentado no jardim de casa, aproveitando o sol invernal ao meu lado.
- Como?
- Feliz aniversário - ele repetiu. - Hoje é dia 18, não é? Há quase quarenta anos atrás, você estava se preparando para me fazer o homem mais feliz desse planeta.
Senti meus olhos arderem e pisquei rapidamente para afugentar as lágrimas.
- Trinta e oito - sorri.
- Trinta e oito. Como o tempo voa, não? Quem apostaria que ainda estaríamos juntos hoje?
- Eu sempre apostei - respondi suavemente.
- Você não conta - ele descartou aquela possibilidade com um gesto lento. - Você é tão apaixonada por mim que não me deixaria escapar por nada - sorriu.
- Isso é bem verdade.
- Não que eu não tenha tentado fugir, sabe?
- É mesmo?
- Mas é claro. Que tipo homem eu seria se não tentasse?
- Não sei... Um homem apaixonado?
- Nah - ele negou.
- Vai dizer agora, depois de trinta e oito anos, que você não é apaixonado por mim? - sorri, pois eu sabia bem a resposta.
- Me parece mais resignação.
- Óbvio. Que outra mulher iria te aturar, não é?
- Exatamente - ele riu. - Ela sempre foi muito exuberante. Tinha todo esse pelo ao redor da cabeça, parecendo um leão em miniatura. Minha mãe não queria animais em casa, no começo. Mas meu pai a convenceu daquele jeito mandão que só nós homens sabemos. Acho que ela acabou se resignando com o tempo...
Senti as lágrimas correrem livres dos meus olhos até tocarem minhas bochechas e depois despencarem do meu rosto. Meu coração também pareceu despencar, como se dobrasse de peso e afundasse no peito, se acomodando bem lá embaixo, não querendo mais doer.
Fora tão breve dessa vez... Tão breve.
- Feliz aniversário - murmurei, mas ele já não entenderia se ouvisse.
O ele que eu conhecia se foi. E o sentimento que ficou é muito estranho. É como esquecer a letra de sua canção favorita. Daquela que você tinha certeza de que nunca seria capaz de se esquecer. Daquela de que você se orgulhava de conseguir cantar até mesmo o nanana no ritmo certo.
A regra é que o meu ele já não existe. Mas as exceções... Essas mesmas exceções, que ficam mais raras dia após dia, são o que me mantém respirando e vivendo e esperando. De esperanças é difícil viver, sabe? Mas é o que me resta. O que nos resta.



P.S.: Pauta para a 115ª Edição Musical do Bloínquês.

12 comentários:

  1. Nossa, uma história triste mas ao mesmo tempo bela!
    Parabéns! E boa sorte nesta edição!

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  2. *---*
    Que conto mais lindo.
    Adorei a tua narrativa, como conduziste o texto e como fez-me emocionar com minhas palavras.
    É realmente difícil viver de esperança, mas á vezes ela a única que nos resta.
    Parabéns mesmo, viu?!


    http://gabipuppe.blogspot.com.br/

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  3. Ai, que emocionante, tão fofo, adorei! Tu escreves muito bem guria, e seu blog é lindo, gostei :) Pretendo voltar mais aqui!

    Bjs

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  4. Lembro que vim aqui há um certo tempo, lembro que me emocionei com as tuas palavras como agora. Teu conto é maravilhoso, como muitos outros, fiquei com a lágrima no olho pronta pra ser derramada, assim como aconteceu com sua personagem. Parabéns, querida, sucesso sempre! Beijo.

    http://railmamedeiros.blogspot.com.br/

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  5. Me emocionei, deve ser muito angustiante situações como essa. Lindíssimo texto, boa sorte no bloinques!

    recantodalara.blogspot.com

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  6. Fiquei curiosa... ele estava com alguma doença degenerativa que afetasse a memória e o tempo/espaço? Porque é o que parece, sabe?
    Mas enfim, esse texto é muito lindo. Muito. Eu fiquei imaginando se daqui a 38 anos eu não estarei com meu caranguejo dramático... Espero que sim. Amei, mesmo. Me fez pensar muito.
    Bjo!
    PS.: Esse layout está muito, muito lindo. Amei. *-*

    http://miasodre.blogspot.com.br/

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    1. Ainda bem que pareceu isso, por que foi minha intenção rs Só não quis falar claramente. Mas escrevi imaginando alguém com Alzheimer, sabe? :/
      E obrigada :)

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  7. Impossível esquecer algumas coisas, né? Acho que nunca vou conseguir ler, ver ou ouvir o dia 18 e não pensar neles.

    E acho que ficou bem claro que o problema do cara era Alzheimer, me lembrou muito diário de uma paixão, talvez foi referência pra ti.

    Amei! Parabéns ;)

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    1. É, dia 18... Impossível esquecer, não importa quanto tempo passe. Obrigada, Jéssi <3

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    2. nossa, esse doeu. esse doeu demais (mas ai, que bonito).

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